Crítica | Uncut Gems (2020)
Todo admirador de cinema, em algum momento, se deparou, ou inevitavelmente irá se deparar, com o nome do saudoso Richard Donner. Donner foi o responsável por dar vida através da direção e produção a filmes imortais como Superman: The Movie (1978), Ladyhawke (1985), The Goonies (1985) e Lethal Weapon (1987). Em sua carreira, o cineasta não se inclinou a desenvolver nenhuma obra que pudesse ser nomeada como filme de autor. Entretanto, o refinado cuidado com a verossimilhança, presente em seu trabalho, deixou desenhada uma clara assinatura em sua filmografia.
Conta-se, de forma quase mítica, que no início das filmagens de Superman: The Movie (1978) o diretor afixou em uma das paredes do set de filmagens uma grande foto de Christopher Reeve vestido com a icônica roupa do personagem. E usando letras garrafais, escreveu na fotografia a palavra – verossimilhança. Com essa atitude o diretor salientou, para si e para todos os envolvidos no desenvolvimento daquele filme, que a verossimilhança seria o ponto que jamais poderia ser perdido de vista. Consequentemente, Superman se tornou um marco na história do cinema e o precursor de uma indústria milionária baseada em personagens de histórias em quadrinhos.
A verossimilhança, isto é, a semelhança à verdade é um simples, mas nem por isso fácil, conceito elaborado por Aristóteles. Em poucas palavras ela define que em um universo narrativo, mesmo que ficcional, deve sempre haver coesão entre os elementos apresentados. Estabelecendo assim, que a história desenvolvida por um escritor não necessariamente tem compromisso de fidelidade com o mundo real, contudo deve sempre se manter fiel às regras de seu próprio mundo. Richard Donner entendia e explorava o surpreendente poder da verossimilhança para que o espectador, durante a exibição do filme, fosse suspenso momentaneamente da realidade.
Donner, evidentemente, não foi o primeiro a dedicar um olhar atento para a verossimilhança. Ainda assim, a forma como ele enxergou o cinema, influenciou e influência, direta ou indiretamente, a maneira como diversos realizadores se relacionam com o texto e a linguagem cinematográfica. Josh e Benny Safdie – os irmãos Safdie, diretores e roteiristas de Uncut Gems (2020), são exemplos de cineastas posteriores a Donner, que ao longo de sua filmografia em filmes como The Pleasure of Being Robbed (2008), Heaven Knows What (2014) e Good Time (2017) deixam em evidência um habilidoso uso da verossimilhança a fim de que todos os aspectos em seus longas vibrem com o mesmo propósito.
Dessa forma Uncut Gems possui diálogos concisos com rara ou nenhuma exposição. Uma trilha sonora intencionalmente soando, de forma constante, os mesmos acordes. Uma frieza fotográfica quase documental e uma edição que intencionalmente contribui para a imersão do espectador na forma frenética que a história se desenvolve. Os elementos fílmicos caminham juntos à narrativa proposta pelos irmãos Safdie. E, sem sombra de dúvidas, a memorável atuação de Adam Sandler, no papel principal, é a força gravitacional que unifica em uníssono todos esses elementos.
Howard Ratner, interpretado por Adam Sandler, é o dono de uma joalheria em Nova York. Negócio que progressivamente está sendo minerado por seu vício em jogos de azar. Ele é casado, possui três filhos e uma amante. Ao se apossar de uma rara opala negra, extraída das minas da Etiópia, Ratner julga ter tirado a sorte grande. Uma vez que, a pedra, que vai a leilão, despertou o interesse de um astro da NBA que está disposto a fazer um alto lance pela joia. Com o valor que ganhará no leilão Howard pressupõe que conseguirá, finalmente, quitar seu débito com um violento e impaciente agiota.
Ratner possui três vidas. Em sua vida pública, é o proprietário de uma loja de joias no distrito de diamantes em Manhattan e o pai que vai às apresentações escolares dos filhos. Em sua vida privada, é um marido que está tentando reverter o divórcio desejado por sua esposa e o pai que percebe não ter mais a atenção de sua filha mais velha ao mesmo tempo que, todos os dias, coloca o filho mais novo para dormir. Em sua vida secreta, é um esposo infiel e um apostador compulsivo, que mente, manipula, furta e quebra a confiança das pessoas que confiam em sua imagem pública com o propósito de conseguir dinheiro para financiar seus jogos.
Como resultado dessas vidas, Ratner constrói um castelo de cartas formado por desonestidades. E não refletindo, nem por um momento, sobre suas atitudes, trilha uma vida pantanosa onde a cada passo se afunda mais. É a narrativa de um homem que vive caminhando sem parar, sem olhar para lado nenhum, em uma direção desconhecida. Adam Sandler pulsa em cena e convence o espectador a acreditar, e até mesmo torcer, por esse personagem, que de forma autodestrutiva não reflete que um dia as consequências de suas escolhas e atos serão cobradas.
Adam Sandler possui uma longa carreira na comédia e no cinema. No Brasil, graças à TV aberta, seu nome, na maioria das vezes, é associado pelo público somente ao gênero comédia. Originando, em alguns casos, uma ideia preconcebida a respeito de um filme onde ele é o protagonista. Contudo, é valido lembra que antes de interpretar Howard Ratner em Uncut Gems ele já possuía em sua filmografia trabalhos diferentes da comédia de entretenimento. Punch-Drunk Love (2002), Funny People (2009) e The Meyerowitz Stories (2017) são filmes que devem ser assistidos pelo espectador que após Uncut Gems deseja conhecer mais sobre essa outra face de Adam Sandler. Para que abdicando de uma ideia confortavelmente superficial esse espectador conheça a resiliência presente na interpretação desse ator.
Os irmãos Safdie compassadamente, convidam o espectador a serem otimistas e a dançarem juntos com Howard Ratner a psicodélica melodia que Ratner compõe. A narrativa de forma minuciosa reflete ao publico, em meio ao caos construído por Ratner, uma aparente singeleza do personagem, conduzindo o observador a um estado onde imagina já conhecer a história que está sendo contada, deixando, dessa forma, a audiência em uma posição de conforto. O que deixa pavimentada a passagem para o corajoso e inesperado encerramento da narrativa. Josh e Benny Safdie, ao aplicarem o ponto final em sua história, sacodem o acomodado espectador ao lembrá-lo que a felicidade plena é apenas uma historieta.
Uncut Gems se veste com pedaços de uma roupa de contos de fadas para abruptamente lembrar a quem assiste que contos de fadas não existem. O filme é uma narrativa moderna de um ícaro, que com a mesma arrogância do personagem clássico acredita que a liberdade dada por suas asas é infinita e invencível e por isso desafia o sol. Uma crônica sobre as consequências, mesmo que tardias, de todos os nossos atos.
Ficha Técnica: Título: Uncut Gems | Ano: 2020 | Dirigido por: Josh e Benny Safdie (Safdie Brothers) | Produção: Sebastian Bear-McClard; Eli Bush; Scott Rudin | Duração: 134 minutos
Crítica brilhante.
ResponderExcluirMuito obrigado!
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