Crítica | Dolor y Gloria (2019)


 


Antonio Banderas tornou-se conhecido no Brasil, por parte do grande público, na década de 90 e no início dos anos 2000, através de filmes como Assassins (1995), The Mask of Zorro (1998) e The Legend of Zorro (2005). Obras que foram sucessos de bilheteria no país e que por incontáveis vezes a televisão aberta reprisou. Até mesmo, levando a um fenômeno onde a figura do ator torna-se atrelada a um personagem, nesse caso, o Zorro.

Por consequência, no nosso país, principalmente, devido ao imperialismo Hollywoodiano das salas de cinema, Antonio Banderas tornou-se ícone de filmes de ação. Digo isto, pois, existe um Antonio Banderas anterior à Hollywood e um Antonio Banderas que realiza filmes de outros gêneros. Esse Antonio Banderas, é amigo, há mais de 40 anos, do diretor e roteirista espanhol Pedro Almodóvar e esteve presente em cinco películas de Almodóvar entre os anos 1980 e 1990 – anos anteriores ao descobrimento de Banderas por Hollywood.

Em Laberinto de pasiones (1982), Matador (1985), La ley del deseo (1987), Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) Bandeiras foi coadjuvante e em ¡Átame! (1990) foi protagonista. Em cada um desses filmes Banderas interpreta um perfil diferente de personagem. E quando se torna o protagonista em ¡Átame! (1990) deixa claro não ser só mais um jovem apaixonado por atuar, entregando ao expectador uma de suas melhores atuações. Esses cinco filmes são repletos de uma carga dupla de importância. Uma vez que, são filmes preciosos na filmografia do Almodóvar e foram eles os responsáveis por apresentar ao mundo o jovem ator Antonio Bandeiras.

Banderas e Almodóvar mantiveram a amizade. Entretanto, após a descoberta de Hollywood do ator, o relacionamento profissional dos dois sofreu um hiato até o ano de 2011 quando foi lançado La piel que habito. Filme espanhol que teve uma grande receptividade das salas de cinema ocidentais e traz Banderas como protagonista atuando brilhantemente em um filme fora do gênero ação – gênero no qual o brasileiro havia se acostumado a prestigiar o ator.

Em uma entrevista concedida ao programa Roda Viva, no ano de 1995, ao ser questionado sobre as cenas de sexo em seus filmes Almodóvar respondeu: “Tive a sorte de contar provavelmente com os dois atores mais desinibidos da Espanha e provavelmente do mundo. Atores puramente cinematográficos, e que são Victoria Abril e Antonio Banderas (…) Banderas e Victoria são pessoas que celebram a sensualidade, celebram também os seus corpos. Sem serem exibicionistas, não tem nenhuma sombra ou qualquer problema”. Questionado na mesma entrevista sobre o sucesso de Bandeiras nos Estados Unidos Almodóvar humildemente responde: “Me sinto como a mãe do artista. Orgulhoso!”.

Desde o início de sua carreira Antonio Banderas, de forma versátil, se entregou à atuação. Sua performance nunca se tornou plástica e ele nunca deixou um perfil de personagem se tornar a personificação de sua interpretação nos filmes em que era convidado a atuar – algo que está acontecendo com Liam Neeson, por exemplo, em todos os filmes atuais o ator parecer interpretar o mesmo personagem.

Dolor y Gloria (2019) foi concebido por Almodóvar como uma autoficção. Uma réplica exata do apartamento do diretor foi construído para as gravações. Bandeiras em vários momentos usa as roupas reais do diretor e roteirista. Passagens claras de sua biografia são colocadas na tela. Entretanto, a biografia não é o foco da película. Almodóvar sabe ponderar e a obra audiovisual permanece como o principal ponto de foco para o expectador.

Salvador Mallo, um consagrado cineasta espanhol, possui diversos problemas de saúde, entre eles, uma enxaqueca irremediável e uma dor crônica nas costas. Seu estado físico reverbera em seu trabalho afastando-o da direção de cinema e levando-o a viver uma vida solitária e reflexiva. O sabor, filme que Salvador escreveu e dirigiu 32 anos atrás, acaba de ser restaurado pela cinemateca nacional. A cinemateca entra em contato com Salvador e convida-o a participar de uma roda de perguntas e resposta com os expectadores na primeira exibição pública da cópia restaurada do filme. O inesperado convite faz com que o diretor vá atrás de Alberto Crespo, ator principal do filme, com quem Salvador não conversa desde a estreia do filme, a mais de 30 anos.

Almodóvar através de uma sólida direção realiza uma notável construção e desenvolvimento de personagens. Através da visão do diretor Salvador Mallo está vivo. Suas reflexões estão vivas. Suas dores estão vivas. Seria somente a visão como diretor de Almodóvar o responsável pela verossimilhança presente na tela? Acredito que não. Independente da distância que ele tenta construir entre sua biografia e o roteiro, gerando assim sua autoficção, fica evidente o carinho e atenção com que ele desenvolve essa película.

O diretor oculta de forma proposital alguns recursos da linguagem cinematográfica e utiliza durante o longa cortes que soam naturais, fazendo assim, com que o expectador embarque de forma orgânica na história e por um momento tenha a impressão de olhar através da janela do apartamento de Salvador Mallo. Tendo acesso à intimidade de Salvador o público reage com sentimentos como preocupação e empatia. Deixando claro que a obra conseguiu ultrapassar a barreira da tela e tocar, verdadeiramente, o expectador.

Antonio Banderas de forma quase simbiótica encarna o personagem principal e entrega uma atuação viva e desnuda. Somos capazes de ver e por vezes quase sentir a essência mais profunda de Salvador. O interessante é que essa identificação vem de uma atuação que em determinados momentos possui tons teatrais e não carrega o peso do dito “realismo” na atuação. Entretanto, Banderas nunca se torna caricato. Pelo contrário é uma interpretação carregada de sutileza. Uma atuação que consegue apresentar ao expectador as riquezas intrínsecas em Salvador Mallo.

Almodóvar já declarou em entrevistas que em todos os seus filmes ele adiciona acontecimentos, mesmo que minúsculos, ocorridos em sua vida. Ao assistir Dolor y Gloria (2019), onde as partes biográficas estão mais explicitas imediatamente me vi entendendo melhor o filme Flor de mi secreto (1995), também de Almodóvar. Chega a ser cômico, no bom sentido, o trabalho realizado pelo diretor em Flor de mi secreto (1995). Sem nunca mencionar que a mãe e a solidão da personagem principal poderiam também ser suas o diretor administra ricamente a película. Dolor y Gloria (2019) transforma-se então em uma espécie de quia para algumas das obras anteriores de Almodóvar. Digo isto da forma mais elogiosa possível ao diretor.

Almodóvar sente o que a história, sincera e honestamente, exige. Em Dolor y Gloria (2019) entrega, enquanto enredo, uma história isenta de metáforas. Entretanto, na parte visual e conceitual é um filme que exala a essência do seu criador. Um filme onde, certamente, não cabem desculpas para evitá-lo.




Ficha Técnica: Título: Dolor y Gloria | Ano: 2019 | Dirigido por: Pedro Almodóvar | Produção: Agustín Almodóvar, Esther García, Ricardo Marco Budé, Ignacio Salazar-Simpson | Duração: 114 minutos










Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crítica | Padre Pio (2022)

Crítica | Fendas (2019)

Crítica | Uncut Gems (2020)