Crítica | Padre Pio (2022)
A dicotomia, ou seja, a divisão de um conceito cujas partes, geralmente, são opostas, é um tema recorrente nas artes. O cineasta americano Abel Ferrara, mantendo sempre a imparcialidade e não fixando uma opinião sobre qual seria o certo ou o errado, expõe na totalidade de suas obras a dualidade mais clássica de todas: a oposição entre o bem e o mal. Ferrara se sustenta no sentido cristão ocidental, que essas duas palavras carregam, para desenvolver a sua forma de apresentar o universo de seus filmes ao expectador.
Abel Ferrara é, provavelmente, um dos diretores mais prolíferos de sua geração. Em tempo algum ele se apegou a um gênero ou a uma forma de dirigir, pelo contrário, quando filma, ele se adapta à idealização de seu olhar naquele momento específico. O que significa isso? Significada que para cada gênero que Ferrara dirigiu, seja um slasher, um neo-noir, um filme de máfia, um romance ou até mesmo um documentário, e para cada roteiro que ele teve em mãos ele apresentou um olhar único. Um reflexo do momento em que estava enquanto autor cinematográfico.
Após assistir Padre Pio (2022), o último filme lançado por Ferrara, senti que precisava conhecer mais a respeito do diretor e de sua obra. Afinal, havia assistido somente a um filme do diretor — 4:44 Last Day on Earth (2011). Comecei então uma jornada através de 16 filmes, de diferentes anos e gêneros, na filmografia de Ferrara. A primeira película dessa peregrinação foi The Driller Killer (1979), filme onde o próprio Abel Ferrara interpreta o personagem principal. Fiquei estasiado com a obra e a forma como o diretor optou em contar aquela história.
Esse sentimento se repetiu por mais 15 vezes. Em todos os filmes que assisti Ferrara conseguiu tocar o jovem e despretensioso cinéfilo que ainda habita dentro de mim. Fui apresentado, por exemplo, a King of New York (1990) e The Funeral (1996) filmes que passei a considerar como dois dos melhores filmes sobre máfia feito nos anos 90. Sempre me lembrarei de New Rose Hotel (1998) quando me pedirem indicação de um filme com o tema trapaça. Em Pasolini (2014) e Tommaso (2019), coincidentemente dois filmes que tem Willem Dafoe como ator principal, senti o peso do olhar de Ferrara ao filmar o recorte de uma biografia, respectivamente, uma verídica e a outra não. Dito isso, volto a minha atenção para o filme Padre Pio (2022). Esse também, um filme sobre um momento biográfico específico de um personagem verídico, no caso, Padre Pio de Pietrelcina. Personalidade histórica, que hoje carrega a alcunha de Santo na Igreja Católica Apostólica Romana.
Padre Pio, interpretado por Shia LaBeouf, está com a saúde fragilizada por isso se muda para à cidade de San Giovanni Rotondo, onde ficará em um convento de freis Capuchinhos. Enquanto isso, soldados retornam da Primeira Guerra Mundial e algumas famílias são avisadas que seus familiares vieram a óbito no campo de batalhas. Padre Pio tem as noites conturbadas uma vez que é visitado pelo demônio que o ataca física e psicologicamente. Nesse meio-tempo, na cidade, nasce um núcleo de resistência comunista que está disposto a colocar um candidato para concorrer na eleição municipal para prefeito.
Fiz questão de escrever a sinopse indo e voltando: cidade para Padre Pio e Padre Pio para cidade. Afinal, essa é a primeira impressão do expectador ao se deparar com o filme de Abel Ferrara. A impressão de que estão sendo contadas duas histórias que correm em paralelo, sem nunca se encontrar. O expectador de forma orgânica, se conecta rapidamente, com a história do povo que vive em San Giovanni Rotondo e suas dificuldades. Enquanto a história do Frei Capuchinho é observada pelo público como uma sub-história, às vezes, sem nenhum crédito ou interesse.
Sabendo que Ferrara tem grande admiração pessoal por Padre Pio, começamos a entender que o fato de Padre Pio estar praticamente apagado em um filme que carrega o seu nome no título é uma decisão consciente do diretor. Uma decisão que incomoda a plateia, fazendo com que comecem a se questionar a respeito daquele personagem, e de sua relevância em tudo aquilo que estão assistindo. Nesse sentido, a dicotomia Ferrariana, se assim posso chamar, toma forma.
No filme são claras as linhas que dividem o bem e o mal. Aliás, essa desarmonia é geográfica. Sabemos que quando chega a noite Padre Pio não conseguirá dormir em seu quarto no convento, enquanto isso, na cidade, reuniões do partido comunista são realizadas. Sabemos também, que durante o dia enquanto Padre Pio celebra a missa e atende confissões os trabalhadores da cidade são explorados.
Ferrara coloca as linhas de contraste muito bem posicionadas de modo a direcionar o olhar do expectador para as ações que ocorrem sem a intervenção de Padre Pio. Contudo, a interpretação de Shia LaBeouf não passa despercebida. A atuação é feita de forma reflexiva, quase devocional, e consegue apresentar todo o caráter sublime do personagem principal.
Propositalmente a exposição de Ferrara sobre a história de Padre Pio parece desapaixonada. Uma vez que é levantado o questionamento sobre a forma da apresentação da narrativa, que aparentemente embaralha a história tirando de contexto um objetivo narrativo claro. Olhando de perto, entretanto, a forma escolhida para guiar o olhar do expectador é fruto de um amor nobre. Na realidade, Padre Pio tinha o desejo de passar despercebido. Ferrara, então, atendendo a esse desejo do personagem, desfoca a presença de Padre Pio em um longa que carrega o seu nome.
Padre Pio (2022) é um longa carregado de imparcialidade intencional. Ferrara mantém uma distância dos eventos com uma naturalidade quase documental. Entretanto, essa imparcialidade é usada como ferramente para atenuar todas as dicotomias existentes no texto, seja com o personagem de Padre Pio ou com os habitantes de San Giovanni Rotondo.
Dessa
forma entende-se que Abel Ferrara pode não ser religioso, contudo,
possui fé. Uma vez que, ao olhar atentamente para sua película
percebe-se que todos os eventos estão interligados e o personagem de
Padre Pio, em toda a exposição, na verdade, é o que mais observa e
se padece, o que mais se amargura com todos os acontecimentos
externos. Ferrara deixa o personagem sofrer calado, como em uma
oração silenciosa, onde aparentemente nada está sendo feito, onde
ninguém consegue ouvir o que está sendo dito, entretanto, o
espirito se eleva a Deus, que escuta e entende o coração de quem
ora.
Ficha Técnica: Título: Padre Pio | Ano: 2022 | Dirigido por: Abel Ferrara | Produção: Maurizio Antonini, Philipp Kreuzer, Diana Phillips | Duração: 104 minutos.
Comentários
Postar um comentário