Crítica | Fendas (2019)

 



A luz foi, exclusivamente, a matéria-prima do cinema até o surgimento do som. Quando luz e som se encontraram dentro dos filmes, ocorreu uma convergência tão radical que alguns teóricos chamam o cinema que era feito antes do som de primeiro cinema. Curioso perceber que luz e som possuem propriedades diferentes. O som é uma onda que não se propaga no vácuo, pois necessita de um meio para se disseminar. A luz, por outro lado, também assume a forma de onda, entretanto, não encontra resistência para passear pelo vácuo. Fato é que luz e som, mesmo com suas singularidades, hoje, podem ser consideradas o alicerce no qual se constroem todos os filmes.

Carlos Segundo, diretor e roteirista, é doutor em cinema pela Unicamp e possui diversos curtas em sua filmografia. Entre eles Sideral (2021) que foi indicado à Palma de Ouro de melhor curta-metragem no festival de Cannes no ano de 2021. Seu único longa, infelizmente, até o momento, é Fendas (2019). Um filme onde o diretor perpassa pela linguagem cinematográfica e suas inúmeras vertentes para criar uma narrativa que trata, em seu subtexto, de diversos assuntos, entre eles, luz e som. Levando o espectador a uma intrigante viagem pelos sentimentos objetivos e subjetivos.

Catarina é professora na faculdade federal do Rio Grande do Norte onde leciona a matéria Física da Poiesis. Os professores da faculdade entraram de greve. Entretanto, ela continua indo à faculdade lecionar para o único aluno que ainda comparece às suas aulas. Em paralelo às aulas, Catarina possui, também, um projeto de pesquisa onde estuda o deslocamento da luz provocado pelo som na matéria. Em determinado momento de sua pesquisa, ela começa a se perguntar se o som poderia se propagar na matéria por tempo indeterminado.

A sinopse aparenta complexidade, afinal, o tema que Catarina pesquisa é complexo. Contudo, a sinopse não norteia a experiência do espectador. Discretamente, a direção foca a atenção e empatia, de quem assiste ao filme, para o interior da personagem principal. Em determinado momento do texto, a personagem verbaliza, através de um e-mail, que se sente oca e muda internamente, diz sentir vontade de sair de si. Logo após, descobrimos que ela carrega um trauma não resolvido e pronuncia a seguinte frase: “Para alguns o tempo é cronológico, para outros é crônico”, deixando transparecer que o tempo não conseguiu curar algumas feridas que continuam latentes em seu interior.

À primeira vista, o filme pode soar uma nota conhecida para os apreciadores do cinema asiático. Uma vez que, toda a montagem nos remete ao cinema contemplativo. Alguns planos são longos e sem cortes, sendo filmados de forma frontal, sem nenhum outro movimento da câmera, o que deixa a imagem plana, logo, criando uma ideia de bidimensionalidade, ou melhor, uma cisão entre película e espectador. O que, em certa medida, remete ao título do filme – Fendas. Essa mesma câmera, que fica estática durante minutos acompanhando diálogos, em outro momento perde o interesse nos personagens e foca em objetos inanimados, deixando o espectador saber que está acontecendo alguma ação somente através do som capturado. Em outros momentos, a câmera decide, ou melhor, Carlos Segundo decide, que irá criar planos simplesmente contemplando Catarina realizando atividades do cotidiano como tomar um copo com água, colocar uma lente nos olhos ou observar o mar.

Contudo, saindo da zona de conforto da comparação e mergulhando na obra, percebe-se que o diretor propõe um olhar, na maior parte do longa, a partir de uma câmera expectadora. E se diverte ao, de certa forma, subverter através da narrativa, a forma tradicional da contemplação. Transformando assim a contemplação habitual, no que eu chamo de – a forma da sutileza. Quando digo sutileza me refiro à tenuidade proposta na direção e na narrativa. Tudo é tênue, tudo é volátil, nada parece carregar um significado aparente. Sendo então todos os sinais percebidos e encontrados na sutileza.

Em essência, essa sutileza reside na forma em que os elementos são organizados no longa e não no conteúdo objetivo deles. Os planos longos deixam o espectador à vontade, uma vez que, não impõe o olhar que ele deve ter, proporcionando a quem assiste tempo para se debruçar sobre as minucias da obra. Fendas não é um filme narrativo. Em determinados momentos, a sequência de cortes desorienta o espectador, não digo isso de uma forma pejorativa. A desorientação inicial, após alguns cortes, leva o espectador a ficar mais atento à obra e assim começar a espreitar através da fenda que é criada nesses momentos.

Catarina ganha vida através da expressiva interpretação de Beta Rangel. A atriz trabalha com maestria as fendas presentes no interior da personagem. Sua atuação compassada, solitária, em alguns momentos silenciosa e solene, apresenta ao espectador uma personagem que está gritando por dentro, entretanto, camufla sua dor e sentimentos trabalhando, pesquisando e buscando formas de se entreter. De certa forma, Catarina busca permanecer viva. A junção de direção e atuação levam o espectador a compreender que Fendas não é um filme enquadrável em uma caixa chamada "filme tradicional", mas sim, um longa com alma onde a justaposição dos planos fica responsável por contar a história.

Na sinopse, comentei a matéria que Catarina leciona - Física da Poiesis. Para Aristóteles, Poiesis é o impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos. Pensando assim, fica claro como Carlos Segundo idealiza e articula uma obra com conceitos, à primeira vista, ambíguos, abstratos e que por vezes podem parecer óbvios. Por exemplo, durante toda a construção visual do longa, encontramos cenas que contêm fendas. Nesse momento, o espectador ansioso imagina ter decifrado as metáforas visuais.

Contudo, as fendas não são o espectador que observa, e sim Catarina. O mundo para ela se transformou em uma grande fenda. Fenda esta que foi aberta, em seu interior, independente das ações que ela pudesse ter tomado. Mas uma vez aberta, a manutenção desta fenda fica a critério do tempo. Tempo este que nem sempre consegue fechar todas as fendas.

Ao progredir da rodagem, Fendas se revela ao espectador uma história sobre dor, curiosidade e tempo. Uma história que aparenta ser conhecida, mas que contada por Carlos Segundo ganha um contorno de sutileza que imerge quem assiste em uma jornada pelo existencialismo de Catarina. Colocando o espectador em frente a um espelho onde, olhando para dentro de Catarina, ele olha, também, para dentro de si.


Ficha Técnica: Título: Fendas | Ano: 2019 | Dirigido por: Carlos Segundo | Produção: AUN Filmes, Les Valseurs, O Sopro do Tempo, Casa da Praia | Duração: 80 minutos.






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