Opinião | Oppenheimer - Crônica de um cientista cinéfilo.


 

Por que mais uma análise de um filme que não precisa mais de divulgação? Talvez pela intimidade... “Oppenheimer”, de Chris Nolan, me gerou um sentimento de familiaridade científica que não tive com outros filmes biopics sobre grandes cientistas, como “Uma mente brilhante” e outros sobre Darwin, etc. Cada um tem uma percepção subjetiva de um objeto qualquer, e está por definição é intimista. Um estudante de comunicação verá no filme coisas diferentes do que um cientista, mesmo que este não seja da Física Quântica, e que, claro, não é um gênio também. Daí, mais uma análise.

Logo no início, as cenas em que o jovem Oppie é aluno na Inglaterra, e tem inquietações, visões e até insônia sobre a estrutura do átomo (ainda um ilustre desconhecido nos anos 1920), me bateram como um tapa. Primeiro, aos 19 anos, eu sentia algo parecido tentando imaginar a cadeia de transporte de elétrons em células vegetais – quem me visse nessas horas, talvez ficasse com dó. Mas isso é parte do processo: lembrei do conselho que dou aos alunos de pós-graduação – você deve “dormir” com seus dados, isto é, lembrar de cada valor, mas acima de tudo entender o que cada um diz, pois eles em conjunto contam uma estória que é sua obrigação entender melhor que qualquer um, mesmo eu. Que pressão no estudante. E cenas lapidares! Só vi algo parecido no início de “Uma mente brilhante”, onde o jovem Nash observa a refração de raios luminosos por uma janela e deriva imediatamente uma equação para explicar o padrão de desenho da gravata do seu interlocutor.

Também me bateu o contato e relação de Oppie com os grandes de sua época e a lição a futuros cientistas: onde vou estudar? Nós brasileiros gostamos de pensar “qual a melhor universidade para meu doutorado?”, quando a pergunta certa é ”quem é o melhor orientador para minha linha de pesquisa no momento?”. Aconselhado pelo Niels Bohr, ele larga Oxford e vai para a menos conhecida Goettingen, onde tem exatamente o que e quem ele precisa. No meu caso, tive a honra de conhecer a maioria dos melhores cientistas do mundo na minha área, no Brasil, Alemanha e nos EUA, no momento dourado daquele tipo de pesquisa, e tomar decisões semelhantes que depois se mostraram acertadas.

Uma figura importante no filme é Dr. Edward Teller, nome muito familiar para mim, que o citei diversas vezes por causa de sua equação BET (Brunauer-Emmett-Teller) de 1938, que depois lhe deu o Nobel de Química 1967, muito usada para calcular a área de superfície específica de materiais sólidos – no meu caso, de diferentes solos brasileiros. Em 2003, meu professor de Mineralogia em Ohio State, Dr. Jerry Bigham, antes da aula sobre o assunto, fez uma longa preleção sobre aquele momento no passado e a nossa falta de perspectiva histórica (dos alunos e cientistas) sobre o desenvolvimento de nossa própria ciência. Detalhe: o Brunauer da equação, assim como o próprio Oppenheimer, juntamente com sua mulher sofreram investigação e restrições durante o McCarthyismo, por seu ativismo esquerdista na juventude – perseguição, que o filme mostra, teve participação ativa de Teller, que se tornou isolado na academia também.

Para quem também tem um interesse em misticismo, como eu, a cena polêmica de sexo onde Jean Tatlock recita a frase de Vishnu, me impressionou pela clara alusão a um ato de invocação da destruição – que no caso, foi de posterior auto-destruição da própria Tatlock, fazendo todo sentido. Não só a parte científica do filme foi muito bem aconselhada e mostrada, mas também a mística foi bem explorada. O conflito de egos e intrigas entre os cientistas também é bem familiar: sim, não importa o que as pessoas comuns pensem sobre o que é ciência e “a defendam”, os cientistas são muito humanos em todos os seus vícios e defeitos, assim como, digamos, os jogadores de futebol, advogados, políticos...

O diálogo final com Einstein é de uma profundidade incrível, pois a maioria dos cientistas tende a se julgar desproporcionadamente importante (como os jogadores de futebol, advogados, políticos...). Einstein lembra Oppie da homenagem que lhe fizeram, que na verdade foi uma cerimônia em que Oppie e seus colegas retiraram de Einstein a liderança sobre a área que ele construíra, e que agora seria a sua vez, Oppie, de sofrer o mesmo. Em ciência, um grande avanço (a tal mudança de paradigma) às vezes tem um nome épico como Newton ou Darwin associado, mas na maioria das vezes, esse nome é esquecido enquanto o conhecimento permanece e evolui. Li uma vez um depoimento na Nature, de um agraciado pelo Nobel de Química, que se dizia resignado por já ver suas contribuições mencionadas em livros didáticos sem nenhuma menção a seu nome – e que isso era normal, e não o magoava mais. Claro, esqueci o nome do cientista (mas não o depoimento e lição).

Mas o leitmotiv do filme é o legado conflituoso de Oppenheimer, que se tornou um ativista pelo controle das armas que ele ajudou a criar, em especial da bomba H de Teller, que se tornou seu inimigo por isso. Esse é um tema que inspira a literatura e o cinema desde Frankenstein. A ciência pode ser neutra, mas sua aplicação é feita por humanos, que não são neutros. Watson & Crick talvez ficassem aterrados com uma breve amostra do que se faz com edição de genomas hoje. Novamente para mim, isso bateu perto, embora obviamente com menor seriedade (assim espero). Minha carreira científica iniciou em 1996 estudando a matéria orgânica do solo, ou húmus, que é um componente essencial à produtividade da terra e seus serviços ambientais. Nos poucos anos seguintes, meu orientador (e eu, a reboque) adicionamos a isso a perspectiva de retirar CO2 da atmosfera pelo crescimento vegetal na agropecuária e florestas, sequestrando C no húmus, e mitigando em parte as emissões humanas. Isso aumentou em muito o interesse na pesquisa sobre carbono no solo, que era bem restrito mesmo na Ciência do Solo, e se tornou um hot topic desde então. Porém, o assunto aquecimento global se tornou o motivo para o movimento ambiental extremista de hoje: mesmo nações desenvolvidas como Holanda, Nova Zelândia, Irlanda etc. cogitam ou buscam ativamente diminuir a produção de alimentos na tentativa de diminuir emissões de gases estufa. Posso garantir que nenhum dos cientistas pioneiros que conheci, como Drs. Norman Borlaug, Sherwood Rowland, Rattan Lal, Wolfgang Zech, Alfredo Scheid Lopes, Allyson Paolinelli e outros sequer imaginariam que seu trabalho daria tão certo e que motivaria algo tão insano. Eu já estava com esse gosto ruim na boca antes de ver o filme do Mr. Nolan. Enfim.



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