Crítica | La Jalousie (2013)

 



Confrontar-se com a imagem refletida em seu espelho interior é muitas vezes se deparar com o vazio. Afinal, o eu atual nem sempre é o reflexo do eu ideal que habita em nós. A partir desse encontro, entre quem sou e quem idealizo ser, decisões podem e, por vezes, devem ser tomadas. A singularidade encontra-se quando a posição que nos colocamos perante nossa história cruza-se com a história de outras pessoas. Essa condição pode vir a gerar implicações, nem sempre agradáveis, para os outros envolvidos, de forma direta ou indireta, em nossa narrativa.

Philippe Garrel, diretor e roteirista, conhecido como um dos grandes cineastas franceses que herdaram de Godard e Truffaut o amor incondicional pelo cinema, explora, de forma calculada, em La Jalousie (2013), a progressão no desenrolar dos eventos que ocorrem após um indivíduo adquirir consciência do vazio que preenche o interior do seu eu atual.

Cláudia e Louis vivem em um pequeno apartamento e levam um relacionamento aparentemente saudável. Louis é ator de teatro e recentemente separou-se de sua esposa Clothilde, com quem possui uma filha, Charlotte, para viver ao lado de Cláudia. Mulher que era sua amante enquanto estava casado. Cláudia é atriz. Entretanto, há alguns anos está sem conseguir um papel para atuar. Louis declara amar Cláudia. Ele acredita no talento da atual companheira e torce para que ela encontre um trabalho como atriz.

O filme possui uma seriedade, ao lidar com Cláudia e Louis, que transparece ao expectador uma verossimilhança externa muito profunda. Entretanto, após um segundo olhar percebe-se que os personagens estão cercados de uma névoa onírica que permeia toda a obra. Louis carrega a ilusão de que suas atitudes não terão consequências negativas. Acredita que o amor que sente, ou que imagina sentir, por Cláudia é retribuído na mesma proporção, portanto, fará com que ela suporte todas as necessidades e vontades ao seu lado. Acredita de forma ingenua que o amor basta para satisfazer a vida do casal.

Curiosamente, o único personagem do casal que tem algum desenvolvimento mais profundo é Cláudia. Em determinada cena ela vai visitar, com Louis, um escritor amigo seu de longa data. Nessa oportunidade, que está localizada bem no início do longa, Cláudia lava os pés de seu amigo. Remetendo Cláudia a uma humildade bíblica profunda. Característica que o longa desconstrói apresentando a moral dúbia da personagem. O mundo onírico de Cláudia não acredita que o amor seja o alicerce para se construir uma vida. E acredita que poderá manter uma relação extra-conjugal e que Louis, o seu parceiro atual, pode concordar em continuar vivendo ao seu lado mediante uma melhoria econômica advinda desse seu relacionamento com outro homem. Contudo, as atitudes de Cláudia não são gratuitas, elas ganham folego a medida que Cláudia, em um mergulho interno, se depara com a Cláudia ideal.

La Jalousie (2013) possui poucos personagens. E gira seu núcleo narrativo em torno desse casal. Contudo, nenhum deles é protagonista, todo o protagonismo do longa é depositado nos lugares onde as ações ocorrem. Para isso, Garrel utiliza de ambientes pequenos e estéreis. A maioria das paredes são brancas e gélidas. Os cenários são vazios. Não possuem nenhuma decoração que carregue algum significado. Fato é que esses recintos se tornam os receptores e catalisadores dos eventos e das emoções.

O apartamento onde o casal vive é pequeno e vazio. Cláudia começa a se irritar com o que ela chama de — cubículo. O desconforto dela cresce e torna-se maior que Louis, que nas primeiras crises de Cláudia conseguiu contornar o sentimento dela com um discurso a respeito do amor ser o suficiente para os dois. Ela sente-se estagnada, longe de onde ela quer estar, longe da Cláudia ideal. Para alcançar seu objetivo ela consegue um amante que lhe presenteia com um apartamento do jeito que ela havia sonhado. Cláudia leva Louis no apartamento e revela para ele que o ganhou de um amante.

Nesse ponto da narrativa Garrel deixa claro a importância do ambiente para o enredo uma vez que a conversa entre o casal sobre a origem do apartamento acontece dentro do mesmo. O diálogo poderia acontecer tento outro local como testemunha. Porém, o diretor escolhe o ambiente sobre o qual se fala para experienciar a conversa. O apartamento está sem pintura e sem portas, aparentemente ainda não está pronto. O espaço toma o protagonismo. E dentro desse local ermo acontece um dos diálogos com maior carga moral e ética do filme.

O protagonismo dos ambientes fica mais evidente quando percebemos que o diretor opta em usar durante toda a película uma câmera praticamente parada. Uma câmera imparcial que não molda, pelo menos não de forma obvia, a maneira como o expectador olhará para o longa. Por ser uma câmera estável a impressão esperada seria de tranquilidade. Entretanto, o enredo carregado de dilemas morais emerge dessa tranquilidade e apresenta aos expectadores conturbados eventos que acontecem, segundo a impressão de quem assiste, de forma praticamente orgânica.

Na coletiva de impressa sobre o seu filme Le Sel Des Larmes no festival de Berlim do ano de 2020 Philippe Garrel e os atores do filme em questão falaram um pouco sobre o método de filmagem do diretor. Muito ensaio e filmar em uma única vez. Esse é o método do diretor. Sabemos, portanto, que a organicidade das cenas advêm de um processo exaustivo e detalhado de ensaios que somados a câmera imparcial cria a forte sensação no público de conhecerem alguma história parecida em suas vidas. A verossimilhança torna-se viva.

La Jalousie (2013) é o primeiro filme da chamada — Trilogia de Amor de Garrel. Nesse primeiro capítulo o diretor deixa transparecer que a sua visão de amor não será otimista, feliz e utópica. Os personagens vivem em uma claustrofobia narrativa, uma vez que, estão presos a determinados acontecimentos e vontades em suas vidas. A primeira cena do filme é uma mulher chorando dolorosa e silenciosamente em sua cama. A última cena do filme é Louis, com o coração em fragmentos, desligando a luz e adentrando a escuridão. O amor em La Jalousie (2013) é triste e sofredor.


Ficha Técnica: Título: La Jalousie | Ano: 2013 | Dirigido por: Philippe Garrel | Produção: Saïd Ben Saïd | Duração: 77 Minutos






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