Crítica | L'Ombre des femmes (2015)

 





Estar só é diferente de sentir-se só. Constantemente a solidão que invade o ser, mesmo estando em um relacionamento ou em uma multidão, resulta de um desencontro consigo mesmo. Divergência essa que, em muitos casos, pode levar a uma falta de harmonia com o outro. Arquitetando uma emaranhada rede de solidões e, consequentemente, de tentativas paliativas de atracar o vazio L'Ombre des femmes (2015) é um filme que não tem receio de construir sua história a partir de ferramentas de linguagem que podem ser vistas como dúbias por alguns expectadores.

As escolhas na forma de apresentar a narrativa, feitas por Philippe Garrel se sobressaem e moldam a película. Durante o festival de Berlim de 2020 Garrel deu uma entrevista onde afirmou ser discípulo de Godard e de Truffaut. Sabemos que essa declaração tem origem nas raízes que ele possui na Nouvelle vague Francesa. Entretanto, mais que isso, com essa afirmação o realizador reafirma sua forma de fazer cinema. Lembrando ao expectador que ele, de forma consciente, busca expor suas histórias através de uma refinada e audaciosa relação com a linguagem cinematográfica.

Pierre e Manon são casados e estão passando por uma desagradável situação financeira. Ele é documentarista, ela roteirista e montadora. No momento ambos estão trabalhando juntos em um documentário sobre um antigo combatente da resistência francesa. Um dia enquanto pesquisa em um arquivo de filmes Pierre conhece Elisabeth — doutoranda que estagia no arquivo. Pierre e Elisabeth começam a se encontrar e assim inicia-se um caso entre os dois. Certo dia ao sair do metro Elisabeth vê Manon realizando caricias amorosas em outro homem. Elisabeth então vê-se em uma incógnita: contar ou não para Pierre que Manon também o trai.

Desde o primeiro momento do longa somos apresentados à narrativa através de um narrador onisciente. Um narrador que aparentemente sabe tudo o que acontece — inclusive no interior dos personagens. Ele nos conta o nome, profissão e sentimentos íntimos dos personagens. Em alguns momentos percebe-se o narrador funcionando como uma espécie de intertítulo. Uma vez que narra os acontecimentos antes dos mesmos de fato acontecerem. Sendo assim, o narrador fica responsável, dentro da lógica da montagem, por apresentar ao expectador o curso e as singularidades da narrativa.

Curiosamente, o narrador onisciente não é o único que conta uma história. Enquanto o narrador fala uma coisa a câmera em terceira pessoa faz questão de nos mostrar outra história. Identificamos isso logo no início da narrativa quando o narrador diz que Manon vive à sombra de Pierre — contradizendo o título do filme. Entretanto, a câmera preza por perpectivas onde Manon fica em primeiro plano e Pierre em segundo. Levando a uma cena cabal onde um close mostra a mão de Manon sobre a de Pierre. Deixando claro que, na verdade, é Pierre quem está nas sombras.

Philippe Garrel sabe que olhar e enxergar são antônimos. Em L'Ombre des femmes (2015) o diretor se diverte ao explorar essa contradição. Ele mostra sem mostrar e diz sem dizer. O narrador onisciente diz algo enquanto a câmera em terceira pessoa explora a imagem de uma forma oposta ao que está sendo narrado demonstrando a sagacidade do diretor que aqui tenta a todo custo ocultar o real significado da experiência. Deixando que o expectador interprete de uma maneira mais intuitiva e menos racional a proposta do texto.

Ao retirarmos esses subterfúgios que insistem em direcionar o nosso olhar e nos mostrar os personagens cheios de conflitos, sentimentos e desilusões e nos confrontarmos com o filme percebemos que Garrel quer debater o tema amor de um modo mais profundo, ou melhor dizendo, de uma forma mais madura que no seu longa anterior. Percebemos que todos os personagens são carentes e vivem em realidades vazias. Todos estão sedentos por algo. Todos vivem com o sentimento de solidão e buscam desesperadamente através de diversas conexões se sentirem preenchidos.

Ao buscar na literatura psicológica identifica-se que esse sentimento é comum em relacionamentos. O sentimento de solidão mesmo vivendo um romance. Garrel busca aqui se aprofundar de uma forma apurada nessa discussão. Ao nem mencionar o nome do amante de Manon o filme deixa claro que ela de fato so buscava completar-se. Pierre, por outro lado, tem um motivo mais curioso. Como disse anteriormente nas cenas entre Pierre e Manon a camera sempre busca colocar Pierre a sombra dela. Contudo, na primeira cena de Pierre e Elizabeth a camera busca coloca-los lado a lado. Pierre se sente inferior a Manon e busca um relacionamento que lhe proporcione um sentimento de igualdade.

Pierre é um personagem intrigante. Ele está mais solitário que Manon e Elisabeth e não sabe a quem recorrer. Ele vale-se de Elisabeth para ter a sensação de igualdade e direciona-se a Manon para ter a sensação de comprometimento. Pierre descobre a traição de Manon e decide não terminar o relacionamento com ela. Porém, desconfia de cada movimento que ela faz. No decorrer da narrativa o personagem não tem uma reação expressiva ao que acontece ao seu redor. Somente quando é confrontado por Manon a respeito de também possuir uma amante conhecemos uma faceta de Pierre que até então estava oculta.

Pensando bem, Pierre é um personagem oculto. Ele caminha pela vida tentando se preencher enquanto não expressa nenhum contentamento ou vivacidade com oque ocorre. Manon e Elisabeth, por outro lado, também estão vazias, possuem uma ânsia tão grande de se preencher que se entregam por inteiro aos acontecimentos. A forma como a câmera em terceira pessoa segue Manon deixa transparecer todo o vigor que essa personagem carrega. Os planos com Elisabeth geralmente são em Plongê sugerindo a submissão dela à vida e ao outro. Os três são carentes. Entretanto, cada um carregando sua peculiaridade — Pierre é um inerte, Manon uma astuta e Elisabeth uma submissa.

L'Ombre des femmes (2015) é o segundo filme da chamada — Trilogia de Amor de Garrel. Sem dúvidas o diretor deixa claro que se diverte com toda essa narrativa anovelada. Ao concluir o longa Philippe Garrel expõe oque estava dizendo através de tantas artimanhas linguísticas: o amor é paciente e depende de um amadurecimento. Talvez precise até de um tempo na solidão para então, a partir de um auto entendimento, ele se fortalecer.



Ficha Técnica: Título: L'Ombre des femmes | Ano: 2015 | Dirigido por: Philippe Garrel | Produção: Saïd Ben Saïd, Michel Merkt e Olivier Père | Duração: 73 minutos.





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