Crítica | É Tudo a Mesma Cidade (2023)
Quando decide-se contar uma história algumas escolhas precisam ser tomadas. Primeiramente, deve-se sair do senso comum, se afastar da narrativa central e observar de forma imparcial todos os pontos de vista pertencentes àquela historia. Nesse momento, o contador de histórias opta por qual será a perspectiva utilizada para apresentar ao mundo determinado universo.
É Tudo a Mesma Cidade (2023), desenhando de forma nítida os contornos de seu personagem principal, é um filme que compreende isso. O curta nos apresenta Ronaldo Batista de Sales — Magão, personalidade que poderia preencher dezenas de minutos de película, ao levar-se em consideração a importância do nome dele para o Rio Grande do Norte e para o carnaval do Brasil. Entretanto, de forma consciente e minimalista o roteirista e diretor Júlio Oliveira decide por abordar um olhar sobre Magão que não seria manchete em um tabloide.
Na década de 80 Magão fundou o bloco carnavalesco Ala Ursa do Poço de Sant’Ana — o bloco do Magão. O conceito inicial do bloco era simples — colocar em evidência e homenagear trabalhadores que passavam praticamente como invisíveis para grande parte da sociedade de Caicó. Sem perder sua excelência o bloco possui, hoje, mais de 40 anos e continua desfilando pela avenida da cidade. O bloco do Magão tornou-se um marco para os foliões da cidade de Caicó — RN e referência para o carnaval de todo o Brasil.
Essa resumida biografia do Bloco Ala Ursa do Poço de Sant’Ana, fundado por Magão, conheci através de manchetes encontradas no Google. Afinal não é esse o ponto de vista que Júlio Oliveira decide abordar em seu filme. Como dito na introdução da crítica — para se contar uma história é preciso fugir do senso comum. O diretor sabe disso, e através de um confronto honesto com a personalidade — Magão, ele decide por evidenciar as nuances do ser humano por trás do mito.
O documentário adota um tom contemplativo. As falas de Magão a respeito de sua infância, sobre suas inspirações, aspirações e sobre seu posicionamento social e politico são intercalados por imagens que exaltam as palavras do personagem. Acredito que a contemplação é a forma mais honesta de admiração. Sendo assim, ao deixar o expectador contemplar as imagens que se entrelaçam ao personagem principal o diretor compartilha, e mais que isso — enfatiza, um verdadeiro sentimento de admiração por Magão enquanto planta em quem assiste a mesma admiração.
O curta começa com Magão falando sobre a existência de uma Caicó fantasma, ou melhor, de uma parte da cidade que a maior parte dos habitantes praticamente ignora. O título do filme vem dessa afirmação uma vez que o entrevistador questiona se as pessoas não percebem que é tudo a mesma cidade. O interessante desse momento é que o áudio do entrevistador está propositalmente com uma ruidade e nitidez diferente do áudio do entrevistado. A diferença na qualidade do áudio ilustra a dicotomia que está sendo evidenciada. Existe uma Caicó nítida e existe uma Caicó com ruídos.
Magão segue seu raciocínio e entra no assunto de arte. Ele afirma que — A arte causa espanto, afirmação que de forma frontal vai de encontro com oque acredito. Sempre acreditei, e continuo acreditando, que a arte é oque incomoda. O Diretor Júlio Oliveira aparentemente também acredita. Com 6 minutos de duração — fica um questionamento: A quantidade de minutos necessariamente representa alguma coisa? Acredito que não — o filme É Tudo a Mesma Cidade (2023) incomoda.
Incomoda ao de forma inteligente construir uma narrativa original em volta de um personagem que o senso comum poderia julgar conhecer. Incomoda ao apresentar a contemplação que por vezes passa despercebida por parte dos foliões que acompanham o Bloco do Magão. Incomoda ao sistematizar uma narrativa objetiva e acertada jogando luz sobre um ser humano que possui muito mais camadas do que as notoriamente conhecidas. A arte incomoda — volto a dizer.
Também é de uma grandiosidade cinematográfica o fato de o filme apresentar tanta personalidade através da ausência. Quando digo ausência, me refiro ao fato de o filme não apresentar grandes linhas de contexto para o público. O documentário se resume ao extremamente essencial. Evidenciando o respeito que o realizador possui para com o expectador uma vez que não o trata como incapaz de entender a história que está sendo proposta. Em outras palavras: Júlio Oliveira não acredita que precisa mastigar para o expectador a narrativa que está sendo proposta. Ele respeita e acredita na competência do público em acompanhar a história através da capacidade narrativa da mente de cada individuo.
O que dita se um filme irá ser mais que um produto é a relação do diretor com a obra. É a forma como a narrativa é sentida pelo realizador e principalmente a maneira como ele decide apresentar ao público seu filme. É Tudo a Mesma Cidade (2023) trata-se de uma poderosa crítica social e politica que evidecia através da contemplação as tenuidades de um artista que vive o que acredita.
“Cinema é massa”. Essa fala de um personagem presente no filme Retratos Fantasmas (2023) ecoa em minha mente desde o dia que assisti ao filme. Afinal, concordo com essa afirmação e também considero o cinema massa. Coincidentemente Retratos Fantasmas também se trata de um documentário. E agora, após assistir É Tudo a Mesma Cidade (2023) — filme de estreia do diretor e roteirista Júlio Oliveira — utilizo a minha voz para dizer: Júlio Oliveira consegue fazer o cinema — e o mais importante, o cinema nacional — continuar sendo massa. Portanto, nas mãos desse novo realizador nacional o cinema continua — e continuará, estou ansioso pelos próximos trabalhos — oferecendo momentos memoráveis, ou seja, momentos que poderemos continuar chamando de massa.
Ficha Técnica: Título: É Tudo a Mesma Cidade | Ano: 2023 | Dirigido por: Júlio Oliveira | Produção: Agência Referência | Duração: 06 Minutos.
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